quarta-feira, 6 de maio de 2015

A mercantilização da saúde pavimenta o caminho para os gastos catastróficos com saúde de indivíduos e famílias: a solução não é a privatização.

Artigo de Ligia Bahia na Carta Maior.
No início de 2015, o SUS foi alvo de duas mudanças que restringem objetivamente o direito à saúde aprovado na Constituição de 1988. A primeira alteração refere-se a “constitucionalização” do subfinanciamento, com a aprovação da emenda constitucional denominada orçamento impositivo. A segunda mudança é a permissão para participação direta ou indireta, incluindo o controle, do capital estrangeiro na assistência à saúde. O conteúdo das medidas representa um enorme retrocesso no longo e penoso processo de efetivação do SUS e ocorre em um contexto internacional e nacional distinto daquele marcado pelo neoliberalismo e descrédito nas políticas universais. Movimentos sociais e entidades de saúde pública que resistiram às sucessivas tentativa de desmonte do SUS nos governos Collor, Itamar e FHC foram surpreendidos pelos ataques inesperados e desfiguradores do direito à saúde.
Até pouco tempo atrás, problemas de acesso, qualidade e subfinanciamento do SUS, contabilizando-se as “bocadas” dos empresários da saúde no fundo público eram atribuídos às coalizões políticas de centro-direita. Consequentemente, as respostas aos ataques ao SUS gravitaram em torno da articulação com partidos políticos e parlamentares progressistas. Agora, o tabuleiro e as peças do jogo são diferentes. Em janeiro de 2015, foi sancionada por acordo de lideranças a Lei 13.097 que permite a participação direta ou indireta, inclusive o controle, do capital estrangeiro em todas as atividades de assistência à saúde, até mesmo em instituições filantrópicas. Em fevereiro, foi aprovada na Câmara Federal, por 427 a 44 votos, a EC 358 que reduziu o já minguado orçamento federal para a saúde de 14% da receita corrente liquida em 2000 para 13,2% em 2016.
Embora as pressões para a emissão das duas medidas sejam originadas de fontes distintas, lobbies empresariais e ministérios da área econômica, a sinergia entre ambas é óbvia. O racionamento no acesso e os problemas de qualidade no SUS serão intensificados e os fundos estrangeiros poderão ser utilizados para a expansão da oferta privada. Em nome da governabilidade, tradicionais defensores dos princípios do SUS se pronunciaram favoráveis a alterações no SUS constitucional que sequer foram apresentadas aos fóruns de debate da área. A votação no Congresso explicitou a existência de um bloco majoritário contrário à priorização da saúde pública. A maioria dos parlamentares do PMDB, PSDB, DEM, e também do PT, PSB, PDT e PV, foi favorável à redução do financiamento. A oposição contou apenas com quase todos deputados do PCdoB e do PSOL e votos esparsos em alguns dos demais partidos. O corte de recursos teve, inclusive, o voto favorável de um deputado sanitarista do PT. Advertências de órgãos como Ministério Público e da Advocacia Geral da União, sobre descaracterização dos fundamentos democráticos e nacionais do SUS, não foram suficientes para demover a tramitação a toque de caixa de profundas alterações políticas e jurídico-legais. A transformação em lei de um piso orçamentário que é igual ao teto soma-se às derrotas impostas pelo descumprimento da Constituição Federal, que destinava no mínimo 30% do orçamento da Seguridade Social para a saúde, retirada do Fundo da Previdência Social da base de cálculo dos recursos, e desvirtuamento da destinação da CPMF. O retrocesso inviabilizou e desmobilizou o Projeto de Iniciativa Popular, o Saúde 10, organizado pela CNBB, OAB e Conselho Nacional de Saúde, subscrito por mais de dois milhões de brasileiros, que previa a aplicação de no mínimo 10% da Receita Corrente Bruta (RCB) da União para a saúde.
Logo depois, em março, o deputado Eduardo Cunha, do PMDB, presidente da Câmara e um dos beneficiados por doações dos planos, apresentou a proposta de Emenda Constitucional 451, obrigando todos os empregadores, de trabalhadores urbanos e rurais, a fornecerem planos privados de saúde, ou seja, estabelecendo por decreto estatal, um extenso mercado de planos de saúde. A justificativa para o retorno aos tempos do seguro social privatizado dos anos 1970-1980 é a bandeira da garantia do direito à saúde diferenciado para trabalhadores. Trata-se de uma volta ao tempo da cidadania regulada pela inserção no mercado de trabalho. Esse golpe sobre o SUS seria fatal, mas parece que não prosperará. O próprio autor da proposta de mudança constitucional na saúde está empenhado na aprovação da legislação sobre terceirização, que certamente é contraditória com a perspectiva de transferência para empresas empregadoras das responsabilidades de atenção à saúde. É amplamente conhecido que as coberturas de planos privados estão fortemente correlacionadas com empregos estáveis em empresas de grande porte.
Atirar no SUS é no mínimo um gesto imprevidente. A mercantilização da saúde pavimenta o caminho para os gastos catastróficos com saúde de indivíduos e famílias. Portanto, a solução para a insatisfação com saúde evidenciada em todas as pesquisas de opinião de distintas fontes não é a privatização. O Brasil é o único país de renda média que possui um sistema universal de saúde, esse é um cartão de visitas extremamente valorizado no exterior, que perderá a validade se o SUS se tornar similar a tantos outros programas de saúde focados na assistência aos pobres. Nos fóruns especializados, o SUS é considerado um modelo orientador para outros países que ainda segmentam os cuidados à saúde. Nós ousamos avançar, avançamos, inclusive em conjunturas muito desfavoráveis. É paradoxal que o SUS continue sendo alvejado pelos lobbies empresariais em tempos que estimulam o diálogo.

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